domingo, 12 de setembro de 2010

O mito do Lobisomem em "Fogo Morto"


Danielle Grisi

O mito constitui uma realidade antropológica fundamental, representando uma explicação sobre as origens do homem e do mundo em que vive, como traduzindo por símbolos ricos de significado o modo como um povo ou uma civilização interpreta a existência. Segundo Eliade:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”, Em outros termos, o mito narra como, graças ás façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento...  (ELIADE, 2007, p.11)
            A explicação mítica é contrária à explicação filosófica. A Filosofia procura, através de discussões, reflexões e argumentos, saber e explicar a realidade com razão e lógica, enquanto que o mito não explica racionalmente a realidade, procura interpretá-la a partir de lendas e de histórias sagradas.
            Nenhum mito surge do nada ou da simples vontade de existir; sua origem ou localização temporal dos fatos de que falam são questões bastante complexas. Ao utilizarmos métodos limitados de interpretação, reduzimos o mito a definições que o apresentam como simples fantasia ou fato ilusório.

A força do imaginário popular: o mito do Lobisomem
           Não conhecemos nada mais fascinante do que as histórias populares. Elas são simples e de grande contexto histórico, e remetem a um tempo onde o imaginário popular era comparável à crença antiga das forças divinas exercidas na natureza.
            As lendas populares procuram não só remeter aos valores históricos, como também se utilizam do poder de percepção: o ouvinte percebe a imagem, a mensagem, ou seja, aquilo para onde a história se transporta; não só no tempo, mas na mente. Como o mito passa de boca a boca, as histórias populares vão pelo mesmo caminho, não demonstrando como o mundo foi criado, mas como uma forma de expandir o poder da imaginação, e o que é imaginário se torna parte da convivência do ser.
            Na idade antiga, para se chegar a uma explicação sobre determinada manifestação da natureza, os teóricos apelavam para o divino. A vontade dos deuses estava acima dos homens e é aqui onde o mito se insere. Toda cultura tem seu mito, sua designação para aquilo que é inexplicável pelos experimentos humanos.
            O mito é a argumentação dos acontecimentos que o homem testemunha, é uma reflexão sobre aquilo que é desconhecido. Diante de várias culturas há espaço para inúmeros mitos sobre diversos elementos intrínsecos à natureza humana e ao próprio planeta.
            A presença do mito do lobisomem no romance de “Fogo Morto” de José Lins do Rego encaixa-se na narrativa do fantástico e prende-se ao mundo da literatura oral brasileira. Sobre esse mito argumenta Câmara Cascudo:

Mito em que o animismo, simples nas aparições dos fantasmas, se combina com a zoologia religiosa, para dar a si uma enfermidade real, correspondente à doença dos visionários do medo, combinando-se também como alma-penada, com a idéia do pecado e da penitência. (CASCUDO, 1984, p.180)
Pesquisando em sua origem, sabemos que esse mito é muito antigo, de raízes proximamente européias, chegando ao Brasil através da literatura oral portuguesa, em tempos coloniais.
Os traços com que a imaginação do nosso povo retrata o lobisomem são duplos, porque também essa criatura infeliz, conforme o nome mostra, é dual. Como homem, é extremamente pálido, magro, macilento, de orelhas compridas e nariz levantado. A sua sorte é um fardo, talvez remissão de um pecado. Por via de regra, o fardo é moral, apenas uma sorte.
Segundo a crença, ninguém passa a ser lobisomem. Isso é algo que vem de nascença. Nasce-se lobisomem: em alguns lugares são filhos do incesto, mas em geral o lobisomem nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze anos, começa a sua sorte.
Daí por diante, todas as terças e sextas, da meia-noite às duas da madrugada, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando sete cemitérios, sete vilas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, regressando ao seu lugar de origem e readquirindo a forma humana. Para acabar com a maldição, ele tem que ser ferido com bala ou outro objeto que seja feito de prata.
No Brasil, segundo Câmara Cascudo (1984), o lobisomem só desencanta ferido. Ele não teme as orações. Neste caso, desaparece a punição moral. Trata-se de doença, hipoemia, falta de sangue, anemia. O lobisomem ataca animais novos e crianças para beber sangue, sugando-os pela carótida.

Manifestações de lobisomem: o olhar científico
O que pode transformar um homem em lobo? Existe além do imaginário popular alguma razão para essa afirmação? Sim, a licantropia. A palavra tem origem no grego: lycos (lobo) e tropos (forma). A crença de que determinados homens podiam se transformar em lobisomens era atribuída na Idade Média à bruxaria. Milhares de pessoas, suspeitas de se entregar a essas metamorfoses diabólicas, foram queimadas nesse período.
Na psiquiatria, encontramos uma doença chamada licantropia, explicada como enfermidade mental com tendência ao canibalismo, onde o doente se imagina estar transformado em lobo, inclusive imitando seu grunhido. Em alguns casos graves, esses pacientes negam-se a comer outro alimento que não seja carne crua e sanguinolenta.
Esses transtornos, normalmente diagnosticados como severas psicoses, apresentam um alto grau de histerismo, que corresponde com idéias delirantes, e mudança total da personalidade e, como outras psicoses, não sendo possível separar a realidade do imaginado.
Antigamente, sendo as psicoses de difícil tratamento, proliferavam psicóticos esquizofrênicos e outros doentes mentais, como os sádicos, necrófilos e psicopatas em geral, os quais recorriam à licantropia como via de saída para seus delírios ou seus instintos mórbidos. Esses doentes se valiam dos personagens da cultura e do folclore para solidificar a crença em poder transformar-se em lobo. Possuídos por tais delírios, os doentes vagavam pelas ruas assediando suas vítimas, atacando, mordendo e, em algumas ocasiões, esquartejando e comendo partes do seu corpo.
Outras doenças como a Hipertricose ou o Hirsutismo, que provocam o crescimento exagerado dos pelos do corpo, inclusive o da face, eram interpretadas, antigamente, como qualidades sobrenaturais onde os pacientes podiam converter-se em bestas.
Temos também um grupo de doenças genéticas chamadas de Porfirias, que têm como causa um mau funcionamento da sequência enzimática do grupo Heme da Hemoglobina.
            Fotosensibilidade é um dos sintomas da porfiria, sendo o acúmulo de porfirinas livres de metal na pele produzindo lesões: hirsutismo, para o organismo se proteger da luz, o pelo cresce exageradamente em lugares como: vão dos dedos, dorso das mãos, bochechas, nariz, e em lugares mais expostos a luz, produzindo um aspecto de monstro; pigmentação, a pele pode apresentar zonas de pigmentação ou despigmentação e os dentes podem ficar vermelhos.
            A energia liberada pelas porfirinas faz com que o oxigênio absorvido pela luz solar libere um oxigênio altamente reativo, que produz a destruição dos tecidos, principalmente os mais expostos. Assim, quando esses pacientes se expõem à luz solar, suas mãos se convertem em garras e a sua face peluda mostra uma boca com várias lesões nos lábios.
            Dessa forma teremos o lobisomem descrito pelo mito. Imagine isso acontecendo nos séculos passados onde a medicina estava apenas caminhando para grandes descobertas.

Mestre Amaro: um lobisomem em “Fogo morto”
           A inclusão do mito do lobisomem em “Fogo Morto” é bastante curiosa; isso porque a obra em questão é em parte autobiográfica. Neste caso, entendemos que ao utilizar-se de tal mito para escrever o romance, o autor recorre às imagens formadas em sua mente acerca da citada fera.
Assim, verificamos imaginário popular dentro e fora da obra literária. Na história, acredita-se que a personagem Mestre Amaro, um artesão que trabalha com couro, é um lobisomem que anda assustando as redondezas do Engenho Santa Fé.
O trabalho com o couro, bem como o manuseio das tintas usadas para pintar as peças provocam um amarelão na pele do artesão. Ele não corta os cabelos, não se alimenta bem; os olhos tornam-se também sem vida e amarelados.
Além disso, José Amaro é uma personagem mergulhada em ressentimentos e revolta; é um ser que não aceita a condição em que vive. Isso o leva a preocupar-se muito pouco com sua aparência e saúde. Como forma de liberar sua ira, ele costuma caminhar à noite, sozinho, no meio do canavial. Só basta então que alguém da vizinhança cruze o seu caminho para imaginar o pior. “Credo, cruz, Mestre Amaro é um lobisomem”.
            A partir dessa suspeita, a língua do povo e a imaginação popular vão construindo o mito; a barba grande, os cabelos enormes que cobrem as orelhas dele ajudavam a dar às feições deformadas um aspecto de bicho, ou melhor, de monstro. O mestre José Amaro não tinha conhecimento do que diziam a seu respeito, o que permite que o boato se espalhe ainda mais.
            Depois de recolhidos os primeiros elementos ou índices, os traços físicos e psicológicos, a imaginação popular encarrega-se de construir o mito; passa a construí-lo, a narrá-lo e a divulgá-lo, dando-lhe, então, uma forma narrativa, palpável, mas sempre imprecisa, longínqua, coletiva: “dizem”, “estão dizendo que”, etc.
            Há todo um clima imaginário e um discurso fantástico que progressivamente se vai construindo no romance. A figura do lobisomem tem um começo natural e é aos poucos construída pelo imaginário popular: “O mestre fechou a janela. – Está entrando muito mosquito. Vou andar um pouco. – Toma cuidado com o sereno, Zeca.” Depois de muito andar, José Amaro voltou para casa. “Quando chegou sua mulher já estava com medo: - Que foste fazer a estas horas, Zeca? Só quem está aluado”! “No outro dia corria por toda parte que o mestre José Amaro estava virando lobisomem. Fora encontrado no mato, na espreita da hora do diabo...”
            É através do capitão Vitorino que José Amaro fica sabendo que o povo o via como lobisomem. “Lucinda disse que quando viu aquele homem de andar de cão, sentiu um não sei o quê nela”. “As irmãs de Lucinda contaram a história para D. Adriana e, já na estrada, D. Adriana encontra a negra Margarida, das pescarias que lhe disse: - A senhora já sabe sinhá Adriana? Pois não é que o mestre José Amaro deu para correr de noite?” “E a negra da cozinha do Santa Fé dizia: - Comadre Adriana, o povo está falando muito do mestre José Amaro ... Estão dizendo que ele está virando lobisomem... Estão dizendo, comadre, que aquele amarelão dele é que faz o mestre correr como bicho danado”.
            A fama de lobisomem de José Amaro ajuda a construir e a firmar o discurso mítico que atribui à personificação do lobisomem na Várzea do Paraíba. Depois aparecem novas narrativas que continuam construindo o discurso, como quando Dona Sinhá, que estava lavando roupa no rio, escuta uma moça falando do seu marido, o lobisomem: “Lá em cima chegou a notícia que está aparecendo lobisomem por aqui ... E estão dizendo que é um tal de mestre José Amaro que deu pra virar bicho.”
            A narrativa “Fogo Morto”, ao nos apresentar o perfil físico e psicológico do Mestre Amaro linear e cronologicamente, ou seja, antes do aparecimento do boato, nos mostra de perto como o imaginário popular é responsável não apenas pela criação dos mitos, mas também como se encarrega de fazê-los perdurar e reaparecer sempre que um fato não encontra explicação para sua ocorrência.
          Analisar uma obra literária constitui uma prática riquíssima, não apenas por nos permitir realizar uma jornada dentro de um texto rico de símbolos, imaginário e mitos, mas também por nos revelar muito do momento histórico e do espaço, ou melhor, do ambiente passado dentro da narrativa; por nos apresentar muito sobre as razões que influenciaram o autor a escrevê-lo, bem como suscitar no leitor uma consciência sobre o tema narrado.
            Assim, fizemos uma ligação entre o estudo do mito do lobisomem e a obra “Fogo Morto” de José Lins do rego, tendo como foco a personagem do mestre José Amaro, que fez, mesmo que inconscientemente, com que o povo imaginasse que ele era um lobisomem, devido a hábitos e características estranhas ao povo, que reforçava o pensamento alheio.
Esta pesquisa não encerra o que se pode dizer a respeito do mito do lobisomem, ou mesmo sobre a obra como um todo; pelo contrário, nossa intenção é fomentar a curiosidade para que novos olhares sejam lançados sobre o tema.
            Unir o estudo sobre mitos a qualquer tema, é possibilitar a ele um profundo mergulho, para que as razões mais implícitas ao seu acontecimento venha a iluminar a trajetória dos pesquisadores. É um método de análise que estuda as imagens produzidas e solidificadas coletivamente, que se completam no tempo e no espaço.
 



Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil.  – 3ª ed. – São Paulo: Editora da USP, 1984.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007.
GUYTON, A.C. Fisiologia Humana. - 5ª ed. -  Rio de Janeiro: Ed. Interamericana, 1981.
 



"Eu sou a primeira e a última.
Eu sou a que é honrada
e a de quem se zomba.
Sou a prostituta e a santa.
Sou a esposa e a virgem.
Sou a noiva e o noivo.
E foi meu marido quem me gerou.
Sou o conhecimento e a ignorância.
Sou tola e sábia...
Sou aquela a quem chamam Vida (Eva)
e vós chamastes Morte..."