domingo, 12 de setembro de 2010

O mito do Lobisomem em "Fogo Morto"


Danielle Grisi

O mito constitui uma realidade antropológica fundamental, representando uma explicação sobre as origens do homem e do mundo em que vive, como traduzindo por símbolos ricos de significado o modo como um povo ou uma civilização interpreta a existência. Segundo Eliade:

O mito conta uma história sagrada; ele relata um acontecimento ocorrido no tempo primordial, o tempo fabuloso do “princípio”, Em outros termos, o mito narra como, graças ás façanhas dos Entes Sobrenaturais, uma realidade passou a existir, seja uma realidade total, o Cosmo, ou apenas um fragmento...  (ELIADE, 2007, p.11)
            A explicação mítica é contrária à explicação filosófica. A Filosofia procura, através de discussões, reflexões e argumentos, saber e explicar a realidade com razão e lógica, enquanto que o mito não explica racionalmente a realidade, procura interpretá-la a partir de lendas e de histórias sagradas.
            Nenhum mito surge do nada ou da simples vontade de existir; sua origem ou localização temporal dos fatos de que falam são questões bastante complexas. Ao utilizarmos métodos limitados de interpretação, reduzimos o mito a definições que o apresentam como simples fantasia ou fato ilusório.

A força do imaginário popular: o mito do Lobisomem
           Não conhecemos nada mais fascinante do que as histórias populares. Elas são simples e de grande contexto histórico, e remetem a um tempo onde o imaginário popular era comparável à crença antiga das forças divinas exercidas na natureza.
            As lendas populares procuram não só remeter aos valores históricos, como também se utilizam do poder de percepção: o ouvinte percebe a imagem, a mensagem, ou seja, aquilo para onde a história se transporta; não só no tempo, mas na mente. Como o mito passa de boca a boca, as histórias populares vão pelo mesmo caminho, não demonstrando como o mundo foi criado, mas como uma forma de expandir o poder da imaginação, e o que é imaginário se torna parte da convivência do ser.
            Na idade antiga, para se chegar a uma explicação sobre determinada manifestação da natureza, os teóricos apelavam para o divino. A vontade dos deuses estava acima dos homens e é aqui onde o mito se insere. Toda cultura tem seu mito, sua designação para aquilo que é inexplicável pelos experimentos humanos.
            O mito é a argumentação dos acontecimentos que o homem testemunha, é uma reflexão sobre aquilo que é desconhecido. Diante de várias culturas há espaço para inúmeros mitos sobre diversos elementos intrínsecos à natureza humana e ao próprio planeta.
            A presença do mito do lobisomem no romance de “Fogo Morto” de José Lins do Rego encaixa-se na narrativa do fantástico e prende-se ao mundo da literatura oral brasileira. Sobre esse mito argumenta Câmara Cascudo:

Mito em que o animismo, simples nas aparições dos fantasmas, se combina com a zoologia religiosa, para dar a si uma enfermidade real, correspondente à doença dos visionários do medo, combinando-se também como alma-penada, com a idéia do pecado e da penitência. (CASCUDO, 1984, p.180)
Pesquisando em sua origem, sabemos que esse mito é muito antigo, de raízes proximamente européias, chegando ao Brasil através da literatura oral portuguesa, em tempos coloniais.
Os traços com que a imaginação do nosso povo retrata o lobisomem são duplos, porque também essa criatura infeliz, conforme o nome mostra, é dual. Como homem, é extremamente pálido, magro, macilento, de orelhas compridas e nariz levantado. A sua sorte é um fardo, talvez remissão de um pecado. Por via de regra, o fardo é moral, apenas uma sorte.
Segundo a crença, ninguém passa a ser lobisomem. Isso é algo que vem de nascença. Nasce-se lobisomem: em alguns lugares são filhos do incesto, mas em geral o lobisomem nasceu depois de uma série de sete filhas. Aos treze anos, começa a sua sorte.
Daí por diante, todas as terças e sextas, da meia-noite às duas da madrugada, o lobisomem tem de fazer a sua corrida, visitando sete cemitérios, sete vilas, sete partidas do mundo, sete outeiros, sete encruzilhadas, regressando ao seu lugar de origem e readquirindo a forma humana. Para acabar com a maldição, ele tem que ser ferido com bala ou outro objeto que seja feito de prata.
No Brasil, segundo Câmara Cascudo (1984), o lobisomem só desencanta ferido. Ele não teme as orações. Neste caso, desaparece a punição moral. Trata-se de doença, hipoemia, falta de sangue, anemia. O lobisomem ataca animais novos e crianças para beber sangue, sugando-os pela carótida.

Manifestações de lobisomem: o olhar científico
O que pode transformar um homem em lobo? Existe além do imaginário popular alguma razão para essa afirmação? Sim, a licantropia. A palavra tem origem no grego: lycos (lobo) e tropos (forma). A crença de que determinados homens podiam se transformar em lobisomens era atribuída na Idade Média à bruxaria. Milhares de pessoas, suspeitas de se entregar a essas metamorfoses diabólicas, foram queimadas nesse período.
Na psiquiatria, encontramos uma doença chamada licantropia, explicada como enfermidade mental com tendência ao canibalismo, onde o doente se imagina estar transformado em lobo, inclusive imitando seu grunhido. Em alguns casos graves, esses pacientes negam-se a comer outro alimento que não seja carne crua e sanguinolenta.
Esses transtornos, normalmente diagnosticados como severas psicoses, apresentam um alto grau de histerismo, que corresponde com idéias delirantes, e mudança total da personalidade e, como outras psicoses, não sendo possível separar a realidade do imaginado.
Antigamente, sendo as psicoses de difícil tratamento, proliferavam psicóticos esquizofrênicos e outros doentes mentais, como os sádicos, necrófilos e psicopatas em geral, os quais recorriam à licantropia como via de saída para seus delírios ou seus instintos mórbidos. Esses doentes se valiam dos personagens da cultura e do folclore para solidificar a crença em poder transformar-se em lobo. Possuídos por tais delírios, os doentes vagavam pelas ruas assediando suas vítimas, atacando, mordendo e, em algumas ocasiões, esquartejando e comendo partes do seu corpo.
Outras doenças como a Hipertricose ou o Hirsutismo, que provocam o crescimento exagerado dos pelos do corpo, inclusive o da face, eram interpretadas, antigamente, como qualidades sobrenaturais onde os pacientes podiam converter-se em bestas.
Temos também um grupo de doenças genéticas chamadas de Porfirias, que têm como causa um mau funcionamento da sequência enzimática do grupo Heme da Hemoglobina.
            Fotosensibilidade é um dos sintomas da porfiria, sendo o acúmulo de porfirinas livres de metal na pele produzindo lesões: hirsutismo, para o organismo se proteger da luz, o pelo cresce exageradamente em lugares como: vão dos dedos, dorso das mãos, bochechas, nariz, e em lugares mais expostos a luz, produzindo um aspecto de monstro; pigmentação, a pele pode apresentar zonas de pigmentação ou despigmentação e os dentes podem ficar vermelhos.
            A energia liberada pelas porfirinas faz com que o oxigênio absorvido pela luz solar libere um oxigênio altamente reativo, que produz a destruição dos tecidos, principalmente os mais expostos. Assim, quando esses pacientes se expõem à luz solar, suas mãos se convertem em garras e a sua face peluda mostra uma boca com várias lesões nos lábios.
            Dessa forma teremos o lobisomem descrito pelo mito. Imagine isso acontecendo nos séculos passados onde a medicina estava apenas caminhando para grandes descobertas.

Mestre Amaro: um lobisomem em “Fogo morto”
           A inclusão do mito do lobisomem em “Fogo Morto” é bastante curiosa; isso porque a obra em questão é em parte autobiográfica. Neste caso, entendemos que ao utilizar-se de tal mito para escrever o romance, o autor recorre às imagens formadas em sua mente acerca da citada fera.
Assim, verificamos imaginário popular dentro e fora da obra literária. Na história, acredita-se que a personagem Mestre Amaro, um artesão que trabalha com couro, é um lobisomem que anda assustando as redondezas do Engenho Santa Fé.
O trabalho com o couro, bem como o manuseio das tintas usadas para pintar as peças provocam um amarelão na pele do artesão. Ele não corta os cabelos, não se alimenta bem; os olhos tornam-se também sem vida e amarelados.
Além disso, José Amaro é uma personagem mergulhada em ressentimentos e revolta; é um ser que não aceita a condição em que vive. Isso o leva a preocupar-se muito pouco com sua aparência e saúde. Como forma de liberar sua ira, ele costuma caminhar à noite, sozinho, no meio do canavial. Só basta então que alguém da vizinhança cruze o seu caminho para imaginar o pior. “Credo, cruz, Mestre Amaro é um lobisomem”.
            A partir dessa suspeita, a língua do povo e a imaginação popular vão construindo o mito; a barba grande, os cabelos enormes que cobrem as orelhas dele ajudavam a dar às feições deformadas um aspecto de bicho, ou melhor, de monstro. O mestre José Amaro não tinha conhecimento do que diziam a seu respeito, o que permite que o boato se espalhe ainda mais.
            Depois de recolhidos os primeiros elementos ou índices, os traços físicos e psicológicos, a imaginação popular encarrega-se de construir o mito; passa a construí-lo, a narrá-lo e a divulgá-lo, dando-lhe, então, uma forma narrativa, palpável, mas sempre imprecisa, longínqua, coletiva: “dizem”, “estão dizendo que”, etc.
            Há todo um clima imaginário e um discurso fantástico que progressivamente se vai construindo no romance. A figura do lobisomem tem um começo natural e é aos poucos construída pelo imaginário popular: “O mestre fechou a janela. – Está entrando muito mosquito. Vou andar um pouco. – Toma cuidado com o sereno, Zeca.” Depois de muito andar, José Amaro voltou para casa. “Quando chegou sua mulher já estava com medo: - Que foste fazer a estas horas, Zeca? Só quem está aluado”! “No outro dia corria por toda parte que o mestre José Amaro estava virando lobisomem. Fora encontrado no mato, na espreita da hora do diabo...”
            É através do capitão Vitorino que José Amaro fica sabendo que o povo o via como lobisomem. “Lucinda disse que quando viu aquele homem de andar de cão, sentiu um não sei o quê nela”. “As irmãs de Lucinda contaram a história para D. Adriana e, já na estrada, D. Adriana encontra a negra Margarida, das pescarias que lhe disse: - A senhora já sabe sinhá Adriana? Pois não é que o mestre José Amaro deu para correr de noite?” “E a negra da cozinha do Santa Fé dizia: - Comadre Adriana, o povo está falando muito do mestre José Amaro ... Estão dizendo que ele está virando lobisomem... Estão dizendo, comadre, que aquele amarelão dele é que faz o mestre correr como bicho danado”.
            A fama de lobisomem de José Amaro ajuda a construir e a firmar o discurso mítico que atribui à personificação do lobisomem na Várzea do Paraíba. Depois aparecem novas narrativas que continuam construindo o discurso, como quando Dona Sinhá, que estava lavando roupa no rio, escuta uma moça falando do seu marido, o lobisomem: “Lá em cima chegou a notícia que está aparecendo lobisomem por aqui ... E estão dizendo que é um tal de mestre José Amaro que deu pra virar bicho.”
            A narrativa “Fogo Morto”, ao nos apresentar o perfil físico e psicológico do Mestre Amaro linear e cronologicamente, ou seja, antes do aparecimento do boato, nos mostra de perto como o imaginário popular é responsável não apenas pela criação dos mitos, mas também como se encarrega de fazê-los perdurar e reaparecer sempre que um fato não encontra explicação para sua ocorrência.
          Analisar uma obra literária constitui uma prática riquíssima, não apenas por nos permitir realizar uma jornada dentro de um texto rico de símbolos, imaginário e mitos, mas também por nos revelar muito do momento histórico e do espaço, ou melhor, do ambiente passado dentro da narrativa; por nos apresentar muito sobre as razões que influenciaram o autor a escrevê-lo, bem como suscitar no leitor uma consciência sobre o tema narrado.
            Assim, fizemos uma ligação entre o estudo do mito do lobisomem e a obra “Fogo Morto” de José Lins do rego, tendo como foco a personagem do mestre José Amaro, que fez, mesmo que inconscientemente, com que o povo imaginasse que ele era um lobisomem, devido a hábitos e características estranhas ao povo, que reforçava o pensamento alheio.
Esta pesquisa não encerra o que se pode dizer a respeito do mito do lobisomem, ou mesmo sobre a obra como um todo; pelo contrário, nossa intenção é fomentar a curiosidade para que novos olhares sejam lançados sobre o tema.
            Unir o estudo sobre mitos a qualquer tema, é possibilitar a ele um profundo mergulho, para que as razões mais implícitas ao seu acontecimento venha a iluminar a trajetória dos pesquisadores. É um método de análise que estuda as imagens produzidas e solidificadas coletivamente, que se completam no tempo e no espaço.
 



Referências
CASCUDO, Luís da Câmara. Literatura oral no Brasil.  – 3ª ed. – São Paulo: Editora da USP, 1984.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. Trad. Póla Civelli. São Paulo: Perspectiva, 2007.
GUYTON, A.C. Fisiologia Humana. - 5ª ed. -  Rio de Janeiro: Ed. Interamericana, 1981.
 



sábado, 5 de junho de 2010

"A Sétima Profecia" - Escatologia e Milenarismo no cinema

A Escatologia

Não se pode abordar escatologia, sobretudo no Ocidente, sem levar em consideração a influência do cristianismo sobre o nosso modo de enxergar o mundo e de conceber a nossa existência. Certamente hoje mais do que em qualquer outra época, principalmente diante da crise das utopias, das investidas selvagens do capitalismo neoliberal em nossas vidas, da assustadora onda de violência e corrupção, tem-se criado uma atmosfera de perplexidade e de pouca esperança nas ações humanas.
Esse clima de desesperança e de caos é bastante propício para que se retome uma discussão que acompanha a humanidade desde sempre: o fim do mundo. Para os mais religiosos, a recorrência de eventos que fogem à normalidade, seja de ordem natural, como tempestades, enchentes e tremores de terra, seja de ordem social, como as doenças e a fome, são prenúncios de que o fim dos tempos está próximo.
Muitos acreditam que a humanidade só terá um conserto se houver a intervenção de Deus em nosso meio; acontece que para eles ‘consertar’ o mundo significa pôr um fim no mesmo. Ainda segundo esse ideário, a vida após o fim será perpetuada num plano espiritual. A Terra, como a conhecemos, deixará de existir. Esse evento, acredita-se, será complementado com o Juízo Final – quando todos serão julgados por Deus.


Essa intervenção divina com tal propósito pode parecer um tanto absurda para alguns, todavia, há quem acredite firmemente nessa possibilidade. Observemos as palavras de Renold Blank (1993), doutor em teologia, extraídas de sua obra Nosso mundo tem futuro: “Um mundo sem esperanças afunda em crises de sentido cada vez mais profundas, nenhuma promessa de satisfação consumista poderá encher o vazio nos corações de seus integrantes. Nessa situação surge mais do que nunca a necessidade de anunciar e de proclamar, a um mundo carente de esperanças, a grande mensagem do Reino de Deus”.
Esse “Reino de Deus” mencionado pelo teólogo é o lugar do “tempo seguinte”, trata-se do espaço celestial onde passarão a viver os escolhidos, ou seja, aqueles que seguiram fielmente os preceitos cristãos ao longo de suas vidas (isto, segundo a crença cristã). Nesse sentido, podemos observar que essa escatologia tão defendida por alguns grupos não tem apenas a intenção de ‘consertar’ o planeta, mas a de punir aqueles que não atingiram requisitos exigidos pelo citado segmento religioso.



 Quando a discussão toma esse caminho abrem-se brechas para que o ideário do fim do mundo seja considerado como uma argumentação bastante controversa e de pouca consistência; já que Deus, mesmo sendo criador de todo universo, estaria privilegiando apenas um grupo de pessoas em detrimento de tantos outros. Caberia indagar por que razão destruir um planeta inteiro para salvar adeptos de um só segmento religioso. É certamente uma tarefa gigantesca para um propósito deveras específico.
Desse modo, pensar escatologia por aqui é conceber o fim do mundo com o propósito de se viver uma vida eterna ao lado do Deus cristão. Ainda assim, há muitos que contestam a veracidade do ideário do fim do mundo. Primeiro, pelo excesso de elementos fantásticos que envolvem o tema, tornando-o cientificamente inconcebível; segundo, por estar estritamente relacionado às religiões. Sabe-se que muitas delas são acusadas de manipular o pensamento humano com objetivos de enriquecimento. Não significa dizer, porém, que mesmo entre os descrentes não haja bastante curiosidade e especulação acerca do assunto.
Essa difusão desenfreada do tema escatologia abre espaço para o surgimento de muitas inverdades (eventos que não constam nos livros sagrados), que se espalham rapidamente, sobretudo nos dias atuais, em que se pode contar com a ajuda da internet como instrumento propagador. Não são poucos os e-mails sem autoria que circulam no mundo virtual acerca desse tema. De certo modo esse tipo de procedimento termina por banalizar a escatologia, reiterando para alguns sua natureza fantasiosa e pouco consistente.


O ideário milenarista

O salto tecnológico vivenciado pelo homem nas últimas décadas, sobretudo no que diz respeito aos meios midiáticos e informativos, muito tem contribuído para a consolidação de um pensamento bastante materialista; e por que não dizer facilmente propenso a rupturas com o mundo das crenças e das tradições populares. Crê-se mais facilmente no lógico, no palpável, naquilo que pode ser explicado pela ciência. É fato dos nossos dias.
Esse materialismo poderia reinar absoluto em nosso tempo, já que o ceticismo que lhe é inerente está sendo impulsionado por uma crença cada vez mais forte na força do ser humano como único autor de sua história, isso sem mencionar a comprovada força que possui o poder econômico, que contribui consideravelmente para a consolidação desses valores materialistas.
Curiosamente esse mergulho desenfreado em um mundo tecnológico e robotizado tem facilitado o retorno de ideários religiosos referentes ao final do mundo, que pareciam estar adormecidos em meados do século XX. Juntamente com esses rumores sobre o fim dos tempos percebe-se uma crescente histeria religiosa em todo planeta.
Alguns grupos religiosos fundamentam-se em torno do ideário do fim do mundo; tentam precisá-lo com datas; enumeram eventos, estipulam castigos, arriscam incluir-se entre aqueles que alcançarão a salvação. É tomando como base esses fundamentos que se constrói a maior parte dessas narrativas sobre a escatologia.
Conhecer o futuro sempre foi um dos ideais da humanidade, que, já tendo ciência do passado e do presente, teria com o futuro ao seu dispor a completude do seu conhecimento. Experimentaria o total domínio sobre o tempo e o espaço. Mas o futuro está lá, onde não se chega com o pé no presente. Assim, as narrativas aproveitam essa porção não-preenchida dentro da história humana e criam esse ‘encontro’ com o futuro à sua maneira.
Embora muitos enredos de livros e filmes tenham sido criados à revelia, percebe-se que em grande parte a escatologia presente nessas narrativas está relacionada à religião de alguma forma. Mesmo quando essa ligação não é tão explícita, ainda assim percebem-se elementos que identificam tal relação.
Em geral, muito mais do que sinalizar novos tempos, a escatologia funciona em algumas narrativas como um depurador da má conduta dos indivíduos em todos os sentidos – o fim do mundo não ocorre apenas para que se possa refazê-lo, mas para aniquilar aqueles que se desviaram das leis e das regras determinadas.
O sentido da tragédia, da catástrofe, e, de certo modo, do desconhecido, quando abordados nas narrativas, levam o homem a refletir sua autonomia sobre a própria vida. Em geral, fazem-no pensar que ocupa um pequeno aposento no grande plano que é o universo e suas leis.
No que diz respeito ao Ocidente, essas imagens do fim dos tempos foram fortemente divulgadas pela Bíblia, retratadas principalmente no livro do Apocalipse, e se condensaram, sobretudo, na idéia do Juízo Final – momento em que todos prestariam contas dos seus atos ao juiz supremo – Deus.
Alguns textos anteriores, no entanto, já haviam sinalizado o fim do mundo, livros como o de Isaías e de Daniel, que previam um período de paz e prosperidade, trazido por um messias; este reinaria em harmonia durante mil anos, período em que Satã estaria acorrentado. Depois disto a humanidade seria submetida ao Juízo Final.
Em seu livro História do medo no Ocidente, Jean Delumeau (2009) elenca um conjunto de textos posteriores à publicação da Bíblia que criaram uma atmosfera fatalística em torno do ano mil. Tais abordagens fizeram surgir o que intitulou-se milenarismo, ou seja, a crença de que a história humana está demarcada por intervalos de mil anos; sendo que ao fim de cada um destes períodos ocorreriam transformações de todas as ordens no universo.

 A Sétima Profecia

Em "A Sétima profecia" (1988), as imagens e os acontecimentos da obra revelam um mundo em dissolução, à espera de ser ‘resgatado’ por um ser humano puro, bom, capaz de salvar toda humanidade com um gesto seu. É o que faz Abby – personagem principal do filme – quando decide doar sua alma ao filho, um natimorto, e assim evita que a profecia que prevê o fim do mundo se cumpra inteiramente.
A história utiliza algumas passagens do livro de Joel, considerado pelos cristãos como o livro do arrependimento. Por ter sido realizado em 1988, a 12 anos da virada do milênio, os autores de A Sétima profecia podem sim ter sido influenciados, ainda que inconscientemente, por ecos do milenarismo. Não é à toa que outros filmes do gênero estrearam na década seguinte, e foram sucessos de bilheteria.
No filme, percebemos a repetição do discurso sobre a necessidade do retorno de Deus à Terra para tentar ‘consertar’ o mundo, que já apresenta sinais de rachadura em seu sistema. A humanidade havia falhado mais uma vez; não correspondeu àquilo que pregava as escrituras sagradas. Mostrou-se desatenta às leis da criação. Deverá pagar.
Um anjo é enviado à Terra para realizar a vontade de Deus: destruir a humanidade. Tão pesada é a missão, mesmo para alguém a mando do próprio criador, que no início da película pensamos tratar-se do vilão da história; afinal de contas ao quebrar os selos ele dá início a uma série de catástrofes, que vão culminar com o fim do mundo.


Os sinais começam a ocorrer um por um: tempestades, enchentes, incêndios, fome, doenças, guerras, ganância desmedida, corrupção, entre outros. Ocorre um eclipse; o fim está próximo. O dia fica escuro como a noite. A música se amplifica, torna-se ensurdecedora; estão todos no meio de um terremoto; cai uma chuva de granizo. No meio disso tudo, surge a figura da mártir (Abby) que, ao doar sua própria vida, restaura a harmonia na Terra. O chão para de tremer, a música torna-se suave. A humanidade terá mais uma chance.
Final quase feliz; afinal a personagem principal teve que morrer.
    A escatologia mencionada nos textos sagrados não abre espaço para final semelhante, já que a maior parte do planeta sucumbirá, e não haverá possibilidade de aparecer um mártir para desfazer uma das profecias. Assim está escrito, assim deve acontecer. Para o discurso religioso, a única possibilidade de salvar-se é seguir cegamente as leis de Deus.
A resposta do público às narrativas que utilizam o tema escatologia é imediata. Trata-se de rever nas telas do cinema, ampliado por todos os efeitos especiais, algo de que se tem conhecimento desde sempre. As religiões propagam o fim do mundo de maneira bastante alarmante. As crianças escutam em casa, na igreja, no colégio; o assunto se internaliza, mistura-se aos comandos do pensamento; toma para si um imaginário todo particular.
Jean Delumeau (2009) argumenta: “não foi por acaso que a escatologia que anunciava a iminência do Juízo Final foi difundida sobretudo por aqueles dentre os homens de Igreja que estavam mais tomados pela preocupação pastoral. Isso é verdade especialmente para os grandes Reformadores protestantes”.

É do nosso conhecimento a supervalorização dada à escatologia por alguns segmentos religiosos. Isso pode nos levar a indagar sobre os motivos que os impulsionam a defender tão ardentemente tal ideário. Mas não o faremos aqui. Nosso trabalho contenta-se em perceber que o tema escatologia, embora desacreditado e desdenhado por muitos, é sem dúvida alguma, um dos assuntos que mais são abordados em nossa sociedade.


Provar, ou não, a veracidade das profecias; que elas aconteçam como predizem os textos sagrados, ou não, é o que menos importa. Aos que assistem às narrativas, bem como aos proponentes desta abordagem, o que realmente importa é entender a força que possui o pensamento humano. O inatingível, de tanto que falamos nele, de tanto que o estudamos, de tanto que o possibilitamos, pousa em nossas mãos, tornando-se tão próximo de nossas verdades primárias, que, se o mencionarmos, fazemos com que o interlocutor seja capaz de ‘tocá-lo’ de forma semelhante.

Danielle Grisi
Ricardo Fabião
André Agra

REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. A arte poética. São Paulo: Martim Claret, 2003.
BLANK, R. J. Nosso mundo tem futuro. São Paulo: Paulinas, 1993.
DELUMEAU, Jean. História do medo no Ocidente 1300 -1800: uma cidade sitiada. Tradução: Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DICIONÁRIO TEMÁTICO DO OCIDENTE MEDIEVAL / Coordenação: Jacques Le Goff e Jean-Claude Schmitt; coordenador da tradução: Hilário Franco Júnior. Bauru, SP: Edusc, 2006.
SCHULTZ, C; FIELD, T. A sétima profecia. Produção de Tedd Field; direção de Carl Schultz. EUA, Interscope Communications/TriStar Pictures / ML Premier Productions, 1988. DVD. 01hs. 37min. Color.

(Algumas imagens foram extraídas do filme "A Sétima Profecia")

quarta-feira, 26 de maio de 2010

Intolerância Religiosa e Gênero em "O pagador de promessas"

Na obra de Dias Gomes é recorrente uma literatura em prol dos oprimidos, que traz em sua temática uma visão esquerdista de oposição a preceitos religiosos tradicionais. Seus personagens simbolizam categorias representadas por opressores e oprimidos. Estes precisam seguir normas e regras impostas para não sofrerem consequências. No caso da personagem Zé do Burro de “O Pagador de Promessas”, este foi vítima de um ‘algoz’, personificado por uma instituição religiosa.
A obra literária conta a história de um homem que mora no interior da Bahia, que faz uma promessa a Santa Bárbara para curar o seu melhor amigo, o burro Nicolau. Zé recorre a um terreiro de Candomblé, pois na capela de sua cidade não tem imagem da santa, que no sincretismo religioso corresponde a Iansã, orixá do Candomblé. Ele, então, promete que se Nicolau ficar bom ele carregará uma cruz de madeira da roça até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Sendo um personagem muito devoto e inocente, muitas pessoas se aproveitam da situação. Persistente, ele não abandona a promessa, mas sofreu com a intolerância do padre e da polícia até chegar a um fim trágico.

O pagador de promessas apresenta dois mundos em conflito, onde se observam posturas extremistas, sobretudo, as caracterizadas pela personagem do padre, que parece não aceitar as manifestações populares que ocorrem ao redor de sua igreja, e que se coloca inflexível na questão central da narrativa. Ele representa o lado do poder; dos que estão acostumados a contar a história dita como oficial. O outro mundo é aquele guiado pelas investidas da personagem Zé do Burro; é o mundo dos que sobrevivem isentos de voz e de vontades; tanto é que logo ele se torna uma espécie de herói dos que transitam pelas escadarias da igreja. É a velha e conhecida guerra pelo poder, que não começa na obra, e certamente não termina nela.
Fica claro que em “O Pagador de Promessas” há uma crítica por parte do autor ao formalismo clerical. O apego a certas aparências e ao culto rigoroso da razão, casos como o de Zé do Burro, são inevitavelmente formas de intolerância, mesmo tentando negá-la.
Já a questão de gênero é vista através da figura de Rosa, que também merece um olhar crítico e minucioso. Olhar este que terá de descer a um nível logo abaixo do próprio enredo da obra, o “como contar a história”, porque este procedimento aparentemente camuflado por verbos que indicam ‘apenas’ uma observação do fato, costuma carregar consigo um conjunto de simbologias, tabus e mitos, característicos da época em foi escrito, do espaço onde ocorreu, e curiosamente do ‘narrador’.
O argumento ideológico da obra circula em torno da tradição judaico-cristã, neste sentido, da mais ortodoxa, ao fazer da mulher o ser privilegiado à tentação sexual; uma reminiscência ao mito adâmico. Nesse sentido, haveria uma aproximação, parece-nos, entre Rosa e a Eva Pecaminosa, no “bom” estilo agostiniano e sua explícita misoginia.

É um tema recorrente tanto na literatura como na dramaturgia, provavelmente “não-intencional”, o qual termina por reforçar no imaginário popular a desconfiança sexual para com a mulher, melhor, alimenta a crença em uma natureza sinuosa e maleável das filhas de Eva, em matéria de moral sexual, exceto, obviamente, as santas, as quais se aproximariam mais à imagem da Virgem Maria.
Uma herança edênica, segundo uma leitura interessada e a serviço de um patriarcalismo duradouro, como tal, androcêntrico, presente nos discursos religiosos, desde a patrística e o pensamento de São Tomás de Aquino, e usado como pano de fundo à famosa caça às bruxas e nos processos inquisitoriais. Algo infelizmente ainda bastante arraigado à cultura ocidental, não obstante, os sinais perceptíveis de seu esgotamento, especialmente a partir do ano mítico de 69.
Importante ainda perceber-se o cafetão, de silhueta luciferiana, ou um “Exu”, na sua acepção mítica mais distorcida (e também mais popular), agindo com todas as suas artimanhas (demoníacas), a fim de conduzir a mulher ao pecado.
Nesse sentido, a inocência de Zé do Burro contrasta-se flagrantemente com a astúcia de Rosa, alimentada pelos encantos de seu sedutor sexual. E isso é redundante na obra; o cafetão tem como certa a austeridade do pagador de promessas (o homem) e a solicitude de sua companheira para com os apelos mundanos.
Ora, o casal é retratado tendo a frente um homem afeito a honra e a religiosidade - no contexto de um hibridismo típico do catolicismo brasileiro-, que na sua saga de herói, no caso mártir, por isso sua tentativa na obra de associação à figura do cristo, o que nos lembra a Teoria do Imaginário de Durand.



Posteriormente, na trilha de um roteiro previsível (em função da ocorrência de mitemas) Zé do Burro é traído. Mas é importante ressaltar que Rosa é levada por seu marido sem ser consultada, ou seja, também é tratada como objeto, e acompanha Zé do Burro por tradição (patriarcal). Ela é desejada. Cede a tentação. E, ao final, reforça a imagem do homem honrado e inocente, e da mulher, a própria perfídia em pessoa.

Danielle Grisi (ULHT - UFPB)
André Agra (UFPB)
Ricardo Fabião (UFPB)

Referências:

BARROS, M. N. A. de. As deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001.
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
CAMPEDELLI, S. Dias Gomes: seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico. São Paulo: Abril Educação, 1982.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A simbologia em "A cartomante"




A narrativa de “A cartomante” (conto de Machado de Assis) descreve as situações por que passam as personagens envolvidas em um triângulo amoroso. Na história, Camilo e Vilela são amigos de infância. A vida os afasta durante um tempo. Após alguns anos Camilo faz uma visita a Vilela e conhece Rita, esposa do amigo. Os dois se apaixonam. Certo dia, chega às mãos de Camilo, uma carta, cujo conteúdo revela que sua aventura ao lado de Rita é conhecida por todos. Para desviar as suspeitas, ele resolve rarear suas visitas à casa de Vilela.
Esse distanciamento repentino do amante leva Rita a procurar uma cartomante. A vidente a tranquiliza, afirma que ele jamais a esquecerá. Ao saber disso, Camilo desdenha da credulidade da moça. Um dia, enquanto trabalha, Camilo recebe um bilhete do próprio Vilela, pedindo que vá ao seu encontro sem demora. Receoso quanto ao motivo daquele repentino chamado, Camilo, a caminho da casa do amigo, consulta a mesma cartomante. A vidente diz que nada acontecerá aos dois, pois o terceiro de nada desconfia. Confiante, Camilo retoma seu caminho. Quando chega à casa do amigo, vê Rita, morta sobre o canapé, leva dois tiros e cai morto no chão.

Ao utilizar-se da célebre frase de Hamlet “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”, o narrador de “A cartomante” nos convida a adentrar no universo enigmático do conto. Apropriando-se de uma linguagem simbólica, rica de polissemias, ele conduz a narração, acrescentando aos acontecimentos materiais, outros tantos de ordem psicológica e emocional. A utilização da frase de Hamlet no início da obra não se dá por acaso. Ela aponta para caminhos que possibilitam a existência do inexplicável, atua na narrativa como um símbolo do mistério.



O que observamos para concluir que há na narrativa uma simbologia do mistério, foi a utilização de elementos como a crença, a descrença, a visita à cartomante, a negação de Camilo, que mais parece uma fuga do desconhecido, bem como o argumento de Hamlet, que já funciona no discurso coletivo como símbolo para tudo aquilo que foge ao nosso conhecimento. A este conjunto simbólico pode ser acrescentado o fato de que a conversa entre Rita e Camilo no início do conto se dá em uma sexta-feira. O pensamento ocidental, influenciado pelos dogmas do cristianismo, atribui a este dia da semana um caráter bastante místico. O primeiro motivo se refere à morte de Cristo, que ocorreu em uma sexta-feira. O segundo está ligado à simbologia que permeia o número 6. Por ser o produto de duas atividades ternárias, este algarismo carrega em si inclinações para o bem e para o mal, podendo assim estabelecer relações com o divino e a harmonia, ou com o caos e a revolta. Outro significado para o número 6 aparece no livro Apocalipse. Nesta abordagem o número está diretamente relacionado ao pecado.
Um elemento bastante importante para a leitura simbólica do texto é a carta anônima. Ela traz em si uma natureza intrigante e ameaçadora. Sem procedência declarada, ela adquire um caráter assustador. Camilo se afasta cada vez mais, Rita se enche de dúvidas quanto ao amor dele, por este motivo procura uma cartomante.
De um lado está Rita, fragilizada, vulnerável, buscando alívio e respostas para suas dúvidas; do outro está a vidente, munida de todo mistério que permeia o seu ofício. Um encontro conveniente para ambas. A
cartomante, com as palavras “certas”, restabelece a tranquilidade de Rita. De fato, em sua predição, a mulher não erra: Camilo não deixará de amá-la, nem mesmo a deixará. Aqui, não importa saber se a vidente tem poderes ou não para prever o futuro; o que nos interessa é observar como essas simbologias atuam na narrativa e nas personagens.

O ponto mais alto da simbologia da fragilidade ocorre quando Camilo recebe o bilhete escrito pelo próprio Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora". São simples palavras, mas que podem simbolizar algo terrível.
A esta altura da narrativa não encontramos mais em Camilo os traços que marcavam sua personalidade no início do conto. Ele passa pela casa da cartomante e resolve entrar. Camilo sobe a escadaria em busca de conhecimento. A cartomante extrai as informações das cartas. Tudo depende da sua interpretação. Para Chevalier e Gheerbrant, a leitura de cartas, como o tarô, não se submete inteiramente a nenhuma tentativa de sistematização: há sempre algo que escapa. As combinações são incontáveis, bem como sua interpretação, que exige uma educação da imaginação que só se obtém com muita prática.

Camilo, herói do conto, fragilizado, busca ajuda no desconhecido, precisa de respostas. Assim como ocorre em várias narrativas, o herói do conto obtém respostas satisfatórias em sua visita ao mundo imaterial. Assim já ocorrera a personagens como Ulisses e Enéas. Mas, ao contrário do que ocorre a estes, aqui, há que se destacar a ironia da narrativa, uma vez que as revelações da vidente não condizem com o que está por vir. Reforçando tal ironia, Camilo agradece à cartomante pela tranquilidade restabelecida.



A narrativa sinaliza muito bem a simbologia da morte.; o que nos leva, por um lado, a admitir que provavelmente a cartomante saiba do triste destino que aguarda por Camilo e Rita. Comecemos pela escadaria. Segundo sua simbologia, ela possui um aspecto negativo atribuído à sua descida. Pode significar a queda ao mundo subterrâneo. A vidente alerta-o de que tenha cuidado, pois a escada é escura.

Outro fator bastante curioso é que ao despedir-se dele, a cartomante sobe a escadaria cantando uma barcarola; ou seja, como se estivesse predizendo para Camilo uma viagem a barco, provavelmente no barco de Caronte (o barqueiro dos infernos).

Segundo Chevalier e Gheerbrant:

“A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos.] (...) [a barca dos mortos desperta uma consciência do erro, assim como o naufrágio sugere a idéia de um castigo”. (DS, p. 121, 122)

A personagem em seu momento de fragilidade recorre aos serviços da cartomante. Acredita em suas palavras. A crença aqui foi usada como uma tábua de salvação. Precisa agarrar-se a algo. E agora ele segue tranquilo, sossegado, em direção à própria morte.

Por fim, o narrador descreve a passagem de Camilo pelo Bairro da Glória, onde consegue enxergar, olhando para o horizonte, o ponto em que céu e mar se tocam. Podemos entender simbolicamente que trata-se da glória divina, e, sabemos que só os que morrem podem alcançar tal graça. Segundo os dogmas judaico-cristãos, é somente retornando ao criador, que os seres humanos enxergam a verdadeira glória; e Camilo está mais próximo dela do que pode imaginar.


Danielle Grisi
André Agra
Ricardo Fabião

"Eu sou a primeira e a última.
Eu sou a que é honrada
e a de quem se zomba.
Sou a prostituta e a santa.
Sou a esposa e a virgem.
Sou a noiva e o noivo.
E foi meu marido quem me gerou.
Sou o conhecimento e a ignorância.
Sou tola e sábia...
Sou aquela a quem chamam Vida (Eva)
e vós chamastes Morte..."