quarta-feira, 26 de maio de 2010

Intolerância Religiosa e Gênero em "O pagador de promessas"

Na obra de Dias Gomes é recorrente uma literatura em prol dos oprimidos, que traz em sua temática uma visão esquerdista de oposição a preceitos religiosos tradicionais. Seus personagens simbolizam categorias representadas por opressores e oprimidos. Estes precisam seguir normas e regras impostas para não sofrerem consequências. No caso da personagem Zé do Burro de “O Pagador de Promessas”, este foi vítima de um ‘algoz’, personificado por uma instituição religiosa.
A obra literária conta a história de um homem que mora no interior da Bahia, que faz uma promessa a Santa Bárbara para curar o seu melhor amigo, o burro Nicolau. Zé recorre a um terreiro de Candomblé, pois na capela de sua cidade não tem imagem da santa, que no sincretismo religioso corresponde a Iansã, orixá do Candomblé. Ele, então, promete que se Nicolau ficar bom ele carregará uma cruz de madeira da roça até a Igreja de Santa Bárbara, em Salvador. Sendo um personagem muito devoto e inocente, muitas pessoas se aproveitam da situação. Persistente, ele não abandona a promessa, mas sofreu com a intolerância do padre e da polícia até chegar a um fim trágico.

O pagador de promessas apresenta dois mundos em conflito, onde se observam posturas extremistas, sobretudo, as caracterizadas pela personagem do padre, que parece não aceitar as manifestações populares que ocorrem ao redor de sua igreja, e que se coloca inflexível na questão central da narrativa. Ele representa o lado do poder; dos que estão acostumados a contar a história dita como oficial. O outro mundo é aquele guiado pelas investidas da personagem Zé do Burro; é o mundo dos que sobrevivem isentos de voz e de vontades; tanto é que logo ele se torna uma espécie de herói dos que transitam pelas escadarias da igreja. É a velha e conhecida guerra pelo poder, que não começa na obra, e certamente não termina nela.
Fica claro que em “O Pagador de Promessas” há uma crítica por parte do autor ao formalismo clerical. O apego a certas aparências e ao culto rigoroso da razão, casos como o de Zé do Burro, são inevitavelmente formas de intolerância, mesmo tentando negá-la.
Já a questão de gênero é vista através da figura de Rosa, que também merece um olhar crítico e minucioso. Olhar este que terá de descer a um nível logo abaixo do próprio enredo da obra, o “como contar a história”, porque este procedimento aparentemente camuflado por verbos que indicam ‘apenas’ uma observação do fato, costuma carregar consigo um conjunto de simbologias, tabus e mitos, característicos da época em foi escrito, do espaço onde ocorreu, e curiosamente do ‘narrador’.
O argumento ideológico da obra circula em torno da tradição judaico-cristã, neste sentido, da mais ortodoxa, ao fazer da mulher o ser privilegiado à tentação sexual; uma reminiscência ao mito adâmico. Nesse sentido, haveria uma aproximação, parece-nos, entre Rosa e a Eva Pecaminosa, no “bom” estilo agostiniano e sua explícita misoginia.

É um tema recorrente tanto na literatura como na dramaturgia, provavelmente “não-intencional”, o qual termina por reforçar no imaginário popular a desconfiança sexual para com a mulher, melhor, alimenta a crença em uma natureza sinuosa e maleável das filhas de Eva, em matéria de moral sexual, exceto, obviamente, as santas, as quais se aproximariam mais à imagem da Virgem Maria.
Uma herança edênica, segundo uma leitura interessada e a serviço de um patriarcalismo duradouro, como tal, androcêntrico, presente nos discursos religiosos, desde a patrística e o pensamento de São Tomás de Aquino, e usado como pano de fundo à famosa caça às bruxas e nos processos inquisitoriais. Algo infelizmente ainda bastante arraigado à cultura ocidental, não obstante, os sinais perceptíveis de seu esgotamento, especialmente a partir do ano mítico de 69.
Importante ainda perceber-se o cafetão, de silhueta luciferiana, ou um “Exu”, na sua acepção mítica mais distorcida (e também mais popular), agindo com todas as suas artimanhas (demoníacas), a fim de conduzir a mulher ao pecado.
Nesse sentido, a inocência de Zé do Burro contrasta-se flagrantemente com a astúcia de Rosa, alimentada pelos encantos de seu sedutor sexual. E isso é redundante na obra; o cafetão tem como certa a austeridade do pagador de promessas (o homem) e a solicitude de sua companheira para com os apelos mundanos.
Ora, o casal é retratado tendo a frente um homem afeito a honra e a religiosidade - no contexto de um hibridismo típico do catolicismo brasileiro-, que na sua saga de herói, no caso mártir, por isso sua tentativa na obra de associação à figura do cristo, o que nos lembra a Teoria do Imaginário de Durand.



Posteriormente, na trilha de um roteiro previsível (em função da ocorrência de mitemas) Zé do Burro é traído. Mas é importante ressaltar que Rosa é levada por seu marido sem ser consultada, ou seja, também é tratada como objeto, e acompanha Zé do Burro por tradição (patriarcal). Ela é desejada. Cede a tentação. E, ao final, reforça a imagem do homem honrado e inocente, e da mulher, a própria perfídia em pessoa.

Danielle Grisi (ULHT - UFPB)
André Agra (UFPB)
Ricardo Fabião (UFPB)

Referências:

BARROS, M. N. A. de. As deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001.
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
CAMPEDELLI, S. Dias Gomes: seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico. São Paulo: Abril Educação, 1982.

sexta-feira, 21 de maio de 2010

A simbologia em "A cartomante"




A narrativa de “A cartomante” (conto de Machado de Assis) descreve as situações por que passam as personagens envolvidas em um triângulo amoroso. Na história, Camilo e Vilela são amigos de infância. A vida os afasta durante um tempo. Após alguns anos Camilo faz uma visita a Vilela e conhece Rita, esposa do amigo. Os dois se apaixonam. Certo dia, chega às mãos de Camilo, uma carta, cujo conteúdo revela que sua aventura ao lado de Rita é conhecida por todos. Para desviar as suspeitas, ele resolve rarear suas visitas à casa de Vilela.
Esse distanciamento repentino do amante leva Rita a procurar uma cartomante. A vidente a tranquiliza, afirma que ele jamais a esquecerá. Ao saber disso, Camilo desdenha da credulidade da moça. Um dia, enquanto trabalha, Camilo recebe um bilhete do próprio Vilela, pedindo que vá ao seu encontro sem demora. Receoso quanto ao motivo daquele repentino chamado, Camilo, a caminho da casa do amigo, consulta a mesma cartomante. A vidente diz que nada acontecerá aos dois, pois o terceiro de nada desconfia. Confiante, Camilo retoma seu caminho. Quando chega à casa do amigo, vê Rita, morta sobre o canapé, leva dois tiros e cai morto no chão.

Ao utilizar-se da célebre frase de Hamlet “há mais cousas no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia”, o narrador de “A cartomante” nos convida a adentrar no universo enigmático do conto. Apropriando-se de uma linguagem simbólica, rica de polissemias, ele conduz a narração, acrescentando aos acontecimentos materiais, outros tantos de ordem psicológica e emocional. A utilização da frase de Hamlet no início da obra não se dá por acaso. Ela aponta para caminhos que possibilitam a existência do inexplicável, atua na narrativa como um símbolo do mistério.



O que observamos para concluir que há na narrativa uma simbologia do mistério, foi a utilização de elementos como a crença, a descrença, a visita à cartomante, a negação de Camilo, que mais parece uma fuga do desconhecido, bem como o argumento de Hamlet, que já funciona no discurso coletivo como símbolo para tudo aquilo que foge ao nosso conhecimento. A este conjunto simbólico pode ser acrescentado o fato de que a conversa entre Rita e Camilo no início do conto se dá em uma sexta-feira. O pensamento ocidental, influenciado pelos dogmas do cristianismo, atribui a este dia da semana um caráter bastante místico. O primeiro motivo se refere à morte de Cristo, que ocorreu em uma sexta-feira. O segundo está ligado à simbologia que permeia o número 6. Por ser o produto de duas atividades ternárias, este algarismo carrega em si inclinações para o bem e para o mal, podendo assim estabelecer relações com o divino e a harmonia, ou com o caos e a revolta. Outro significado para o número 6 aparece no livro Apocalipse. Nesta abordagem o número está diretamente relacionado ao pecado.
Um elemento bastante importante para a leitura simbólica do texto é a carta anônima. Ela traz em si uma natureza intrigante e ameaçadora. Sem procedência declarada, ela adquire um caráter assustador. Camilo se afasta cada vez mais, Rita se enche de dúvidas quanto ao amor dele, por este motivo procura uma cartomante.
De um lado está Rita, fragilizada, vulnerável, buscando alívio e respostas para suas dúvidas; do outro está a vidente, munida de todo mistério que permeia o seu ofício. Um encontro conveniente para ambas. A
cartomante, com as palavras “certas”, restabelece a tranquilidade de Rita. De fato, em sua predição, a mulher não erra: Camilo não deixará de amá-la, nem mesmo a deixará. Aqui, não importa saber se a vidente tem poderes ou não para prever o futuro; o que nos interessa é observar como essas simbologias atuam na narrativa e nas personagens.

O ponto mais alto da simbologia da fragilidade ocorre quando Camilo recebe o bilhete escrito pelo próprio Vilela: "Vem já, já, à nossa casa; preciso falar-te sem demora". São simples palavras, mas que podem simbolizar algo terrível.
A esta altura da narrativa não encontramos mais em Camilo os traços que marcavam sua personalidade no início do conto. Ele passa pela casa da cartomante e resolve entrar. Camilo sobe a escadaria em busca de conhecimento. A cartomante extrai as informações das cartas. Tudo depende da sua interpretação. Para Chevalier e Gheerbrant, a leitura de cartas, como o tarô, não se submete inteiramente a nenhuma tentativa de sistematização: há sempre algo que escapa. As combinações são incontáveis, bem como sua interpretação, que exige uma educação da imaginação que só se obtém com muita prática.

Camilo, herói do conto, fragilizado, busca ajuda no desconhecido, precisa de respostas. Assim como ocorre em várias narrativas, o herói do conto obtém respostas satisfatórias em sua visita ao mundo imaterial. Assim já ocorrera a personagens como Ulisses e Enéas. Mas, ao contrário do que ocorre a estes, aqui, há que se destacar a ironia da narrativa, uma vez que as revelações da vidente não condizem com o que está por vir. Reforçando tal ironia, Camilo agradece à cartomante pela tranquilidade restabelecida.



A narrativa sinaliza muito bem a simbologia da morte.; o que nos leva, por um lado, a admitir que provavelmente a cartomante saiba do triste destino que aguarda por Camilo e Rita. Comecemos pela escadaria. Segundo sua simbologia, ela possui um aspecto negativo atribuído à sua descida. Pode significar a queda ao mundo subterrâneo. A vidente alerta-o de que tenha cuidado, pois a escada é escura.

Outro fator bastante curioso é que ao despedir-se dele, a cartomante sobe a escadaria cantando uma barcarola; ou seja, como se estivesse predizendo para Camilo uma viagem a barco, provavelmente no barco de Caronte (o barqueiro dos infernos).

Segundo Chevalier e Gheerbrant:

“A barca é o símbolo da viagem, de uma travessia realizada seja pelos vivos, seja pelos mortos.] (...) [a barca dos mortos desperta uma consciência do erro, assim como o naufrágio sugere a idéia de um castigo”. (DS, p. 121, 122)

A personagem em seu momento de fragilidade recorre aos serviços da cartomante. Acredita em suas palavras. A crença aqui foi usada como uma tábua de salvação. Precisa agarrar-se a algo. E agora ele segue tranquilo, sossegado, em direção à própria morte.

Por fim, o narrador descreve a passagem de Camilo pelo Bairro da Glória, onde consegue enxergar, olhando para o horizonte, o ponto em que céu e mar se tocam. Podemos entender simbolicamente que trata-se da glória divina, e, sabemos que só os que morrem podem alcançar tal graça. Segundo os dogmas judaico-cristãos, é somente retornando ao criador, que os seres humanos enxergam a verdadeira glória; e Camilo está mais próximo dela do que pode imaginar.


Danielle Grisi
André Agra
Ricardo Fabião

"Eu sou a primeira e a última.
Eu sou a que é honrada
e a de quem se zomba.
Sou a prostituta e a santa.
Sou a esposa e a virgem.
Sou a noiva e o noivo.
E foi meu marido quem me gerou.
Sou o conhecimento e a ignorância.
Sou tola e sábia...
Sou aquela a quem chamam Vida (Eva)
e vós chamastes Morte..."