

Fica claro que em “O Pagador de Promessas” há uma crítica por parte do autor ao formalismo clerical. O apego a certas aparências e ao culto rigoroso da razão, casos como o de Zé do Burro, são inevitavelmente formas de intolerância, mesmo tentando negá-la.
Já a questão de gênero é vista através da figura de Rosa, que também merece um olhar crítico e minucioso. Olhar este que terá de descer a um nível logo abaixo do próprio enredo da obra, o “como contar a história”, porque este procedimento aparentemente camuflado por verbos que indicam ‘apenas’ uma observação do fato, costuma carregar consigo um conjunto de simbologias, tabus e mitos, característicos da época em foi escrito, do espaço onde ocorreu, e curiosamente do ‘narrador’.
O argumento ideológico da obra circula em torno da tradição judaico-cristã, neste sentido, da mais ortodoxa, ao fazer da mulher o ser privilegiado à tentação sexual; uma reminiscência ao mito adâmico. Nesse sentido, haveria uma aproximação, parece-nos, entre Rosa e a Eva Pecaminosa, no “bom” estilo agostiniano e sua explícita misoginia.

Uma herança edênica, segundo uma leitura interessada e a serviço de um patriarcalismo duradouro, como tal, androcêntrico, presente nos discursos religiosos, desde a patrística e o pensamento de São Tomás de Aquino, e usado como pano de fundo à famosa caça às bruxas e nos processos inquisitoriais. Algo infelizmente ainda bastante arraigado à cultura ocidental, não obstante, os sinais perceptíveis de seu esgotamento, especialmente a partir do ano mítico de 69.
Importante ainda perceber-se o cafetão, de silhueta luciferiana, ou um “Exu”, na sua acepção mítica mais distorcida (e também mais popular), agindo com todas as suas artimanhas (demoníacas), a fim de conduzir a mulher ao pecado.
Nesse sentido, a inocência de Zé do Burro contrasta-se flagrantemente com a astúcia de Rosa, alimentada pelos encantos de seu sedutor sexual. E isso é redundante na obra; o cafetão tem como certa a austeridade do pagador de promessas (o homem) e a solicitude de sua companheira para com os apelos mundanos.
Ora, o casal é retratado tendo a frente um homem afeito a honra e a religiosidade - no contexto de um hibridismo típico do catolicismo brasileiro-, que na sua saga de herói, no caso mártir, por isso sua tentativa na obra de associação à figura do cristo, o que nos lembra a Teoria do Imaginário de Durand.

Posteriormente, na trilha de um roteiro previsível (em função da ocorrência de mitemas) Zé do Burro é traído. Mas é importante ressaltar que Rosa é levada por seu marido sem ser consultada, ou seja, também é tratada como objeto, e acompanha Zé do Burro por tradição (patriarcal). Ela é desejada. Cede a tentação. E, ao final, reforça a imagem do homem honrado e inocente, e da mulher, a própria perfídia em pessoa.
Danielle Grisi (ULHT - UFPB)
André Agra (UFPB)
Ricardo Fabião (UFPB)
Referências:
BARROS, M. N. A. de. As deusas, as bruxas e a Igreja: séculos de perseguição. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 2001.
BEAUVOIR, S. de. O segundo sexo. Tradução Sérgio Milliet. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009. 2v.
CAMPEDELLI, S. Dias Gomes: seleção de textos, notas, estudo biográfico, histórico e crítico. São Paulo: Abril Educação, 1982.
é muito bruxa e, muito mais ainda, lúcida por isso.
ResponderExcluirparabéns